Isolamento
Deitado na cama olhava para o
teto. Já fazia quase um ano que ele estava em isolamento, mais por condição que
por escolha. Nunca imaginou que aquela
quitinete de aproximadamente 30 m² se configuraria num casulo a espera de uma
liberdade que não chegava nunca. Descia sempre que precisava comprar cerveja e
cigarros. Isso o ajudava a passar o tempo entre devaneios de fumaça e livros de
Albert Camus. No porta-retratos que estava sempre ao alcance de seus olhos uma
profunda saudade o mantinha submerso.
Uma ligação o traz de volta à
tona, pela primeira vez após longos meses uma promessa de trabalho
representaria uma esperança de fissura em seu longo e incomodo invólucro. Abre a
janela e a luz do dia se espalha por todo o ambiente.
Precisava levar documentos e
carteirinha de vacinação, não se lembrava da última vez que a tinha visto.
Procurou em todas as gavetas e nada. Saiu sem ela. Tomou um ônibus até a Secretaria de Saúde,
lá se apresentou para o trabalho.
- Faltou sua carteirinha.
- Não a trouxe.
- Sem falta da próxima vez,
aqui trabalhamos com saúde, precisamos dar o exemplo. A gente te espera amanhã
cedo para o início da campanha de vacinação. Não se atrase.
Um sol de janeiro fazia com
que seu corpo derretesse dentro daquela fantasia de Zé Gotinha, políticos se
sucediam em discursos intermináveis, repletos de demagogia e intenções
eleitoreiras. Com suas máscaras de pano e dispostos em fila o povo aplaudia
como num longo espetáculo de grande farsa e cinismo. O calor aumentava, na
mesma proporção da crise de renite que o acometia ali dentro. Concentrava-se em
sua respiração e aproveitava os momentos de maior excitação daquele falatório
para soltar contidos e espaçados espirros de alívio.
O suor banhava-o por inteiro,
uma sensação de vertigem e desmaio passou a tomar conta de si, precisava
resistir. Resistiu. O fim dos discursos deu-lhe novo ânimo. As pessoas
aglomeravam-se ao seu redor para tirar fotos com as crianças. Um menino
coloca-se diante dele e diz:
- Eu sei que você não é o Zé Gotinha,
é só um homem fantasiado, mamãe me contou. Deve ser quente aí dentro né? Por
onde você me vê? Você também tem que tomar vacina?”
Ele observa a criança sem
responder nada. Logo, a mãe chama seu filho, e o menino se vai. Por algum tempo
seu olhar se perde no vazio, um carro passa diante de si projetando seu reflexo
através da película nos vidros. Ele se vê, mas não se reconhece, O sol já começa
a baixar e o dia vai lentamente morrendo no horizonte.
Em casa o noticiário na TV informa sobre a campanha de vacinação, objetos unitários desfilam sob seu olhar, um relógio de parede, um único prato sobre a mesa acompanhado de um copo americano, uma cerveja o maço de cigarros e o porta-retratos a deter sua visão. Retira um cigarro do maço, acende-o e em meio as profundas tragadas percebe uma caixa de sapatos em baixo da cama. Apanha-a, retira vários papéis antigos, alguns exames médicos, prescrições de receitas, e em meio a tudo aquilo sua carteirinha de vacinação. Abre-a. Está vazia, sem nenhuma anotação ou carimbo sequer. Fixa-se nela por algum tempo, depois pega o isqueiro e uma intensa chama passa a iluminar seu rosto.
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