Carta ao filho que não terei

 

Querido filho,

Perdoe-me por não havê-lo trazido ao mundo, mas haverá de concordar comigo e talvez até seja grato por livrar-lhe desta enrascada. Explico-me. Sendo seu abdicado pai um brasileiro nascido no século XX e adentrando ao século XXI pude chegar à vida adulta, nascendo numa ditadura, passando pela redemocratização, inflação galopante, escândalos políticos, impeachments, desigualdade social e obscurantismo. Deveríamos ser o país do futuro, cada vez mais repetimos o passado.

Com as últimas eleições até a democracia passou a representar um sinal de perigo, e a vontade da maioria estava em sobrepujar os que fossem minoria. A guerra foi declarada através de correntes de WhatsApp, postagens no Twitter e discursos de incitação ao ódio e a violência. Os almoços em família nunca mais seriam os mesmos, pais se voltaram contra os filhos e estes se afastaram ainda mais de seus progenitores.

O país entrou numa distopia e a razão deu lugar ao absurdo, passamos a acreditar em teorias conspiratórias, falsos maniqueísmos, terraplanismo, sebastianismo e até em mamadeira de piroca. Sim, a vulgaridade e a baixeza humanas se mostraram sem limites. Em nome da decência nunca fomos tão indecentes, hipócritas e desprezíveis.

O Brasil, antes tido como um país alegre e caloroso passou a se mostrar ranzinza e intolerante, seja para com estrangeiros latino-americanos seja para conosco mesmos, porém subservientes ao neocolonialismo com direito a continência a sua bandeira e estátuas da liberdade espalhadas pelo país. Esquecemos a diplomacia e colocamos em risco nossa economia, respeito e soberania nacional. A vergonha é estampada nas manchetes de jornal.

Aliás, vergonha é algo que perdemos faz tempo e o ridículo passou fazer parte das nossas vidas. Enaltecemos a estupidez, pois somos frutos da ignorância arrogante, mesquinha e discriminatória. Não toleramos a divergência de pensamentos, o debate ideológico ou a equidade social. “Somos todos iguais, só que uns são mais iguais que os outros”. Já diria George Orwell.

Não obstante a isso tudo, pois não há limite para a dramaticidade da nossa tragédia, entramos numa pandemia, e os que antes morriam nos conflitos de terra indígena, baleados nas periferias das grandes cidades, de fome e inanição, passaram também a morrer de Covid 19. Uma “gripezinha” chata, que começou a matar de forma exponencial, gerando um colapso no sistema de saúde, agravado pelo negacionismo, a inércia e o descaso de um governo estúpido e irresponsável.

Meu filho, não queira saber o que nos reserva o futuro, com o sucateamento da educação, da ciência e pesquisa. A flexibilização das leis trabalhistas e o aumento do desemprego, da cesta básica e da miséria. O verde da esperança tem virado cinza e esse calor que faz agora parece às portas do inferno se abrindo para nós. Não há salvação. Assim como em Brás Cubas de Machado Assis onde o protagonista deixa seu saldo positivo na vida ao não ter filhos e não deixar-lhes o legado de nossa miséria. O mesmo me faço, quito-te deste piparote e adeus.

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